sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Dr. Egídio Guimarães, 101º Aniversário do seu Nascimento

Ocorre, no próximo dia 04 de Julho, de 2015, o 101º aniversário do nascimento do Dr. Egídio Guimarães. No suplemento CULTURA, de 27/08/2014 do “Diário do Minho ”tive, então, oportunidade de, em breves palavras, manifestar o meu singelo testemunho acerca de tão notável figura da cultura bracarense da 2ª metade do século XX. Hoje permito-me acrescentar algo mais, desta feita para sublinhar alguns escritos de duas personalidades bem conhecidas que, tal como eu e muitos outros, mais de perto com ele privaram: o Dr. Armando Malheiro Dias e o escritor Altino do Tojal.

1. Na “Bracara Augusta”, vol. XLIII, nºs 94/95 (107/108), Anos de1991/1992, Câmara Municipal de Braga, escreve, nomeadamente, Armando Malheiro da Silva:

“ A minha relação pessoal com o Dr. Egídio Guimarães começou, cresceu e consolidou-se sob o signo do deslumbramento. Há cerca de vinte anos um jovem liceal, dividido entre a hipótese de cursar Direito e a atracção irresistível pela História, deixou-se tocar pelo mágico e subtil fascínio de um Homem, admiravelmente culto, que marcava presença num curso de Arqueologia, ministrado pelo saudoso Cónego Arlindo Ribeiro, no Palácio dos Biscainhos. (… ) Em ambiente tão sugestivo ocorreram as primeiras conversas, tímidas e formais, entre um miúdo à procura do Saber, dentro e fora dos livros, e um Senhor (…), aparentando muita mais idade. Um Senhor que tratava os novos como seus convivas. Era surpreendente!” E mais adiante: “Hoje sei que nesse encontro nasceu um sonho: conviver e trabalhar, sob o olhar zeloso e o estímulo seguro do Dr. Egídio.” (… ) “Era um erudito completo e cidadão politicamente atento, que dominava as mais diversa línguas (incluindo o Latim, é claro!).

E prossegue Armando Malheiro da Silva: “Herdeiro intelectual do Dr. Alberto Feio, bibliotecário e director marcante, o Dr. Egídio Guimarães não foi, certamente, um inovador, mas soube gerir a continuidade com muito tacto e muita generosidade. Um subalterno não era um mero autómato submisso: era uma pessoa com qualidades e defeitos, com ambições e problemas para serem ouvidos e satisfeitos, na medida do possível. O Dr. Egídio sempre se predispôs a ouvir e a consolar os espíritos amargurados. Recusou a postura autoritária típica dos “mangas de alpaca” promovidos a donos do seu bafiento universo e praticou, antes, aquilo a que eu chamaria a “tolerância maiêutica”, ou seja, a exigência do cumprimento do dever através do apelo subtil à consciência do outro.” (…) “Reformado em 1984… não abandonou gabinete, nem se despediu dos colaboradores, porque a instituição e as pessoas souberam dizer-lhe, muito naturalmente e sem complicações burocráticas, ou intenções perversas, quanto estimavam e precisavam da sua presença…” 

2. De uma entrevista do escritor Altino Tojal, respigámos a seguinte passagem: ”Regressei a Braga, onde o director da Biblioteca Pública, Dr. Egídio Guimarães, me contratou para fazer uns pequenos serviços… 

(…)

- “ Com a escrita sempre presente…

- Sim, vivia exclusivamente para a literatura.

- Nunca pensou noutra coisa?

- Nunca, apenas em escrever. Nascera para escrever, nada mais interessava. Convivia na Biblioteca com pessoas cultas, entre quilómetros de calhamaços fascinantes…O director da Biblioteca apreciava deveras as coisas que eu escrevia e não descansou enquanto não as publiquei em livro. Estava bem mais impaciente que eu… Custa a crer, mas garanto que eu não tinha ansiedade nenhuma em publicar aquilo que seria “Os Putos”. Era capaz de estar dias e noites virado a uma só página. Mas enquanto não considerasse que ela estava em condições de ser apresentada ao Dr. Egídio Guimarães…

- Ele funcionava como crítico?

- Como um crítico consciencioso e benévolo. (…) Era um intelectual de fino trato, com cavalheirismos de antanho, amigo discreto mas sólido, um espírito nobre, o embaixador ideal para interceder junto do Eterno pela mesquinha Humanidade.

Também intercedia por mim junto das personagens “de peso” que o visitavam na Biblioteca, mostrando-lhes o meu livro “ Sardinhas e Lua” acabado de publicar e exagerando-lhe talvez os méritos. Foi em boa parte graças a ele que estabeleci contactos com o “Jornal de Notícias”, do Porto, e comecei a experiência jornalística…”

3. Faceta não menos curiosa do Dr. Egídio, um “monárquico profundamente católico, naturalmente conservador, mas tolerante”, era a de benfeitor, tendo doado diversos bens imobiliários, tais como, por exemplo, os terrenos onde está implantada a Escola EB1 de Fraião, ou o Centro Toutinegra da APPACDM, também em Fraião. Mesmo quando pôs à venda alguns terrenos, estes eram a preços tão baixos que houve quem espalhasse a notícia de que havia um senhor em Fraião que “dava terrenos”. Quando uma das filhas “politicamente de esquerda”, soube desse boato, avisou o pai. Naquela simplicidade que lhe era tão peculiar o Dr. Egídio, sempre muito simpático e sorridente, apenas gracejou: “afinal de contas, apenas pratico o socialismo, partilhando os bens com os mais pobres…”

4. O Dr. Egídio Guimarães era, de facto, uma verdadeira “avis rara”do meio cultural bracarense! Seu grande amigo e admirador, a ele dedicou o Dr. Henrique Barreto Nunes três excelentes artigos no suplemento CULTURA deste jornal, datados de 02 de Julho, 09 de Julho e 17 de Setembro de 2014, e cuja leitura vivamente recomendo. Com a devida vénia, aqui se reproduz o pequeno extracto de um deles:

“Em Julho passado, no mês em que se celebrava o centenário do nascimento de Egídio Guimarães, a Biblioteca Municipal Rocha Peixoto…dedicou-lhe uma exposição bibliográfica e documental, de que foi publicado o imprescindível catálogo… A publicação inclui o texto da proposta apresentada pela Comissão de Toponímia e fotos da rua e respectiva placa, uma biografia cuidadosamente ilustrada, a reprodução de uma carta dirigida a Flávio Gonçalves e excertos do texto que EAG lhe dedicou no vol.26 do “Boletim Cultural”, uma bibliografia e ainda o artigo em sua memória publicado no “Diário do Minho” (secção “Entre Aspas”) em 30 de Junho, de 2014. Ficou assim recordada a figura de Egídio A. Guimarães, celebração que a Câmara Municipal de Braga ainda não soube fazer, apesar deste homem de cultura ter sido vereador em duas ocasiões e ter servido sempre devotadamente o concelho…” - Henrique Barreto Nunes, in “Diário do Minho”, 17/09/2014.

5. Homem desprovido de toda e qualquer vaidade, ou dispensáveis protagonismos sem sentido, o Dr. Egídio sempre pautou a sua conduta por gestos simples e afectos admiráveis. Após o artigo por nós enviado, em 28/08/2014, à Senhora Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Braga e em que sugeríamos “um busto condigno em local nobre da Biblioteca Pública/Arquivo Distrital de Braga…” – “Diário do Minho”, 27/08/2014 – foi-nos comunicado, por e-mail de 02/10/2014, que o mesmo tinha sido “encaminhado para o serviço competente”. Infelizmente e quanto a factos concretos, até hoje, nada de novo, a não ser a nossa persistência e firme convicção de que todo este atraso não tenha passado de um lamentável esquecimento por parte de quem de direito. “ Egídio Guimarães foi uma personalidade que deixou marcas impressivas na vida cultural bracarense do séc.XX” – Henrique Barreto Nunes – in “Diário do Minho”, de 09/07/2014 – mais acrescentaremos nós: Egídio Guimarães deixou em Braga, pelo menos para os mais esclarecidos e atentos cidadãos, um rasto cultural bem difícil de passar despercebido, como, aliás, foi unanimemente reconhecido pela Assembleia Municipal, aquando do “VOTO DE PESAR”, exarado em 02 de Março de 1991: “O Dr. Egídio Guimarães distinguiu-se, em primeiro lugar e antes de tudo, pela sua visão e vivência Humanista da sociedade” (…) “ A sua luta pela defesa e divulgação da cultura bracarense, bem como do seu espólio cultural, transformou este Homem num verdadeiro defensor da vida cultural como forma de defender esse princípio tão português, como é o MUNICIPALISMO”.

6. Por conseguinte, a nossa sugestão, ou outra que se entenda como mais adequada, mantem-se perfeitamente actual; aliás, é uma questão de pura justiça e esta, como é evidente, não se mendiga, exige-se. 

BRAGA, Junho de 2015

Domingos Alves,
Vogal para a Educação e Cultura da Junta da Freguesia de S. Vicente.



PS. De entre os numerosos trabalhos publicados, salientamos os seguintes:


“Os Lusíadas e a Independência de Portugal”, in Homenagem da Academia de Braga aos Restauradores da Pátria, 1933, Nº único;

Balâne, in Aos Heróis de 1640, Academia de Braga, 1934. Nº único;

“Congresso Histórico de Portugal Medievo: catálogo da exposição historiográfica no Salão Medieval Superior da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga. Braga: Câmara Municipal de Braga, 1959;

TOJAL, Altino do – “Sardinhas e Lua”: contos. Braga: Editora PAX, 1964. Prefácio;

“A Cúria Régia de Braga de 872 e o Conde Vímara Peres. Braga: Câmara Municipal, 1968. Trabalho elaborado em colaboração com Sérgio da Sila Pinto;

PINTO, Sérgio da Silva – “Estudos e Comentários”. Braga: Câmara Municipal, 1973. Vol. I. Pórtico.

Cónego Arlindo Ribeiro da Cunha: breve biografia. “O Distrito de Braga”, 2ª série. Braga, 1977;

“Uma página de memórias. À laia de prefácio”. Braga, 1986. In MONTEIRO, Manuel – Dispersos, inéditos e cartas: ASPA 1980. pp. V/XV;

“Morte e ressurreição de um palácio”. Braga: ASPA, 1985;

“O meu amigo Gervásio e sua filha catedrática”. Braga: APPACDM, 1986;

“Arquivos: a herança sagrada”. In “Forum”, nº 8, Arquivo Distrital de Braga, 1990. Pp 21/32 Conferência pronunciada na U.M. em 23/05/1986;

“Álvaro Carneiro: in memoriam”. In “Mínia”, nº 8, ASPA, 1986, 313/318;

TOJAL, Altino do – “Os Putos”. Lisboa, 1989. Edição comemorativa do 25º aniversário de “Os Putos” (1964/1989). Prefácio;

“Sete Cartas de Alexandria: uma trilogia: Manuel Monteiro, Albano Justino, Lopes Gonçalves e Braga. In Revista “Bracara Augusta”, Câmara Municipal de Braga, Vol. XL, 1986/1987

“Depoimento sobre o Parque Nacional de Peneda –Gerês e a abertura da Portela do Homem”. In “Giesta”, nº 2, 1980;

“O Arquivo Distrital de Braga”. Nota Explicativa e Informativa para a U. M. Texto elaborado para a comemoração do IX centenário da dedicação da Sé Catedral Bracarense e o insigne e famoso bispo D. Pedro. Associação Comercial de Braga, 1989;

Muita e variada publicação em jornais e revistas, nomeadamente nos periódicos bracarenses “Diário do Minho” e “Correio do Minho”;

Foi autor de traduções do italiano, do francês e do romeno;

O seu espólio literário e de investigação contempla, ainda, uma boa série de trabalhos inacabados, bem como outros por publicar. Exemplo: “A dúvida metódica em Francisco Sanches, precursor de Descartes: o Quod nihil scitur”.

Nota. Um agradecimento muito especial ao meu amigo Dr. Fernando Guimarães pela cedência de fotos e abundante informação histórica e biobibliográfica que me facultou para a elaboração deste artigo.



O LATIM na BRAGA ROMANA – 2015

“ Tem o Latim de ser considerado como língua de cultura que, enquanto tal, prevaleceu muito para além dos tempos gloriosos e longínquos do Império Romano, cultivada, ao longo de vários séculos, por cientistas e homens de letras, poetas e filósofos, que a elegeram como meio de comunicação dos múltiplos saberes que foram constituindo…” – Cristina Almeida Ribeiro, citada por Domingos Alves, in Diário do Minho de 08/06/9.

· Tive oportunidade de visitar as três Praças de Alimentação, no Largo das Carvalheiras, Largo de S.Paulo e Largo de S.Tiago e foi com visível agrado que constatei, “in loco”, que parecem finalmente desaparecidos “ad aeternum” os tão famigerados utensílios de alumínio, plástico, e afins, utilizados para serviço das muitas e variadas refeições/petiscos, desta vez substituídos por outros de barro, aliás bem mais frescos e “romanos”… Pena que a identificação das ementas, ou pelo menos de alguns produtos, não aparecessem escritos em Latim, ainda que morfologicamente adaptado. Aliás, o rico património que os romanos nos legaram não se resume apenas ao valioso espólio arqueológico de que Bracara Augusta se pode e deve orgulhar. A Língua Latina (a verdadeira mãe da Língua Portuguesa) deveria, pois, também estar presente; infelizmente, porém, não foi isso o que se verificou - houve algumas honrosas excepções, diga-se, desde já. Com efeito, poucas foram as tendas que tiveram essa preocupação, sem que se possa, de todo, responsabilizar a Organização da “Braga Romana” e, neste caso, a Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva que, em parceria com a Câmara Municipal e o pelouro da Cultura da Junta de Freguesia de S.Vicente, tudo fizeram para que tal não viesse a acontecer, ao terem organizado, gratuitamente, umas simples, mas certamente muito úteis, “Breves Oficinas” de Latim. Evidentemente que me refiro, apenas e tão só, às tendas comerciais, de alimentação e afins. Quanto a outras áreas, estas já da exclusiva responsabilidade da Organização - com quem, aliás, tivemos o gosto e a honra de colaborar - todo o agrado e satisfação pela sinalética exibida nas diversas faixas e cartazes, quer das realizações lúdico/pedagógicas, quer dos magníficos cortejos histórico/alegóricos, onde o empenho e a preocupação pelo rigor linguístico da língua do Lácio por certo não passaram despercebidos a quem quer que fosse. É que, apesar de nem sempre fácil, tornava-se deveras imperiosa e absolutamente exigível, face à contextualização histórico/literária, uma concreta referência, ainda que pontualmente breve, à verdadeira “língua dos romanos”…

Relativamente aos factos/acontecimentos da “Braga Romana” propriamente dita, permitam-me algumas breves referências, agora de ordem histórico/cultural, assim mais ou menos “ad hoc…”, e que certamente, de modo particular, feriram a nossa atenção:

1. “Ludi Litterarii”. Enorme cortejo pedagógico/cultural, de mais de 5.500 crianças oriundas de diversas instituições de ensino, emprestando às ruas do Centro Histórico por onde passavam uma graciosidade e colorido verdadeiramente encantadores!

2. Com a solene imponência do “Bracara Augusta Triumphalis”- vários quadros alusivos ao período romano – de novo se repetiu uma excelente “recriação histórica da entrada triunfal de César Augusto na bimilenar cidade de Braga”. Apenas um senão: pareceu-nos que, mesmo sem crianças, se transformou num cortejo demasiado longo…

3. Bela recriação do “Casamento Romano” levada a cabo pela Equipa Espiral.

4. Inovador concurso” De Familia Mea”, com as famílias bracarenses a serem desafiadas a usar, sem vergonha, os trajes da época romana durante todo o evento da “Braga Romana”.

5. Muito oportuna e sugestiva a referência da Associação Jovemcoop à vulgar “Casa Romana”, sediada no Largo de S.João do Souto, e onde se podiam admirar, por exemplo, os espaços do “Atrium” (entrada principal); do “Triclinium” (sala de jantar); e do “Cubiculum” (quarto de dormir).

6. Schola Romana, no edifício da Escola do 1º ciclo de S. João do Souto. Devo dizer, aliás, que foi das iniciativas que mais nos surpreenderam, sobretudo pelo conteúdo dos expositores que lá se encontravam: nada mais, nada menos que uma magnífica referência, em excelentes fotocópias a cores, à Língua e Cultura Romanas, onde podámos ler, entre outros títulos, os seguintes: “Quem eram os Romanos”? ; “O Latim e o Ensino”; “Vida Familiar”; Cidadãos e Governantes”; “Roupa, Penteados, Jóias”; “Exército Conquistador”; “Comida e Bebida”; “A Vida na Cidade e no Campo”; “Estradas, Fortes, Muralhas” – tudo numa síntese muito bem elaborada e com uma linguagem perfeitamente acessível à faixa etária a que se destinavam - talvez tivesse passado despercebido a muito boa gente... não, certamente, a nós próprio. Mérito por inteiro à Associação de Pais, Pessoal Docente, crianças, e todos os que tornaram possível um tão belo e oportuno trabalho histórico/pedagógico! 

7. Finalmente, o Polo museológico na zona das Carvalheiras. “A ideia é criar no local um polo museológico a céu aberto que permitiria, assim, um alargamento do centro histórico para aquela zona da cidade”…”que tem que integrar também, naturalmente, elementos de interpretação, de preservação de testemunhos que são susceptíveis à degradação das intempéries” – in Diário do Minho de 23/05/15. Ideia defendida pelo vereador da Câmara Municipal de Braga, Dr. Miguel Bandeira, aquando do colóquio “Cidades, Património e Desenvolvimento”, que decorreu no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva e cuja concretização, tão breve quanto possível merecerá, sem dúvida, o maior aplauso de todos os bracarenses!


PS. No âmbito da “Braga Romana”- 2015, tivemos ainda oportunidade de visitar, na Casa dos Crivos, a “Bracara From Augustus”, magnífica exposição fotográfica, com belíssimas fotos alusivas à Bracara Augusta. Para todos aqueles que, tal como eu, ficaram algo surpreendidos com o termo “from”, aqui fica a explicação que me foi dada: trata-se de” uma frase/slogan atribuída aos responsáveis pela Exposição”. Ainda que francamente discutível (daí o meu natural reparo) face ao contexto, a mesma aparece devidamente assinalada com aspas; assim sendo, nihil obstat…


Braga, 26 de Maio, de 2015
Domingos Alves



NO 107º ANIVERSÁRIO do NASCIMENTO de MIGUEL TORGA

Nascido em S. Martinho de Anta, Vila real, em 12 de Agosto de 1907, Miguel Torga veio a falecer em 17 de Janeiro de 1995, vitimado por doença que não perdoa.

Após breve passagem pelo Seminário de Lamego, ei-lo a demandar Terras de Santa Cruz onde, acolhido por uns tios, passa boa parte da adolescência e juventude, um tanto ou quanto desventuradamente, até de novo regressar a Portugal. Prossegue, então, os estudos secundários para, logo de seguida, se matricular na Faculdade de Medicina de Coimbra, onde conclui a licenciatura em Medicina. É, aliás, no consultório do Largo da Portagem, que exerce a actividade de médico otorrino, praticamente até aos últimos dias da vida aí produzindo, também, a maior parte da sua importante e vastíssima obra literária. 

1. Há 19 anos desaparecido da “terra-mãe” que o “pariu”, continua a fazer germinar, na mente dos seus leitores, e pela fecunda levedura dos seus versos, a ideia de que os verdadeiros poetas nascem, crescem e morrem mas, de facto, nunca desaparecem…E Torga foi, realmente, um grande poeta! Independente de tudo e de todos; medularmente avesso a correntes ideológico – partidárias (ainda que, por vezes, o tenham tentado instrumentalizar), ou seguidismos literários de que sempre se libertou, inflexível e sozinho traçou o seu próprio destino, numa verdadeira linha recta que não mais teve fim, a não ser com o inevitável fatalismo da morte, não se desviando jamais um milímetro que fosse da sua bem longa trajectória existencial. 

De espírito indómito, mas simultaneamente torturado:” Não tive paz, não dei paz, não quero paz”, confessa, meio resignado, meio angustiado: “… logicamente, devia ter ficado a cavar na minha terra, era esse o meu destino (…)” – citação do jornal “Público”, de 16-05-94, aquando do Prémio da Crítica, que na altura lhe fora unanimemente atribuído.

Mais que desassossego íntimo, a sua poesia a todo o momento nos transmite uma verdadeira necessidade ontológica: “preciso tanto de escrever, como a senhora de rezar o terço (… ), respondeu ele a uma veraneante, no Gerês, quando esta lhe perguntou por que motivo ele escrevia “tanto assim…”. O Pe. Avelino, grande amigo e singular companheiro de caça, dizia com certa graça: “Era normal comentarmos os tiros e os falhanços de um e outro. Numa dada altura levanta uma perdiz mesmo à nossa frente; ele atira e falha. Então? digo eu… Estava a desenrolar-se-me um poema”, respondeu ele! – Pe. Avelino, in “Público”, de 18-01-95.

2. De facto, M.Torga escreveu, escreveu muito, assim nos legando uma herança literária que o coloca, inequívoca e muito justamente, ao lado dos maiores escritores portugueses do séc. XX ou até, como refere o crítico espanhol Jesús Herrero na sua magnífica obra “M. Torga, Poeta Ibérico”, um dos maiores poetas da Península. Na verdade, “ cada palavra sua é uma pedra que nenhuma rajada de vento consegue erguer; e, pedra-a-pedra, uma anta arcaica erguida em terra de santo, particularmente São Martinho. Poderão os anos passar e mil ventos demoníacos soprar, aquela anta em terra santa permanecerá, rimando antiguidade com santidade, e o distante adeus (e com ele se ligando assim pelo som) com o eterno Deus. O distante ou quase inaudível é, na verdade, sagrado e eterno, e só se perde quando o ouvem ouvidos comuns; não eram destes ouvidos os de Torga. (… ) A única verdade a que existe dentro do homem; essa ninguém lha pode roubar. E uma pedra que o vento da história e da geografia não ousa erguer, e essa pedra, na verdade uma anta erguida em terra santa de S. Martinho, foi-nos legada por Migue Torga”. Jorge Chichorro, in “Expresso” de 28-01-95.

3. Poeta por excelência, mas igualmente grande no conto, no diário e na ficção autobiográfica, toda a obra de Miguel Torga está imbuída de um forte “telurismo” que certamente a ninguém passará despercebido: para ele, o conhecimento da terra no seu sentido estritamente material, a terrosidade do solo, como diz, é condição primaz para se pertencer, verdadeiramente a uma nação. E, por isso, se impôs a si mesmo, como dever de ética pátria, percorrer todo o corpo físico de Portugal. São de 1949 estas palavras: “é por funda necessidade cultural que eu peregrino esta pátria. ( … )”. “Eça falhou em “A Cidade e as Serras” porque nunca calcorreou as serras. Camilo é muito mais autêntico porque atolava os pés no barro que moldava. Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-las como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e as tristezas” ( Diário V, pág. 60, citado por Jesús Herrero, in ob. cit., pág. 98/99.) 

4. Igualmente merecem oportuna referência as palavras de Fernão Magalhães Gonçalves, um dos seus mais fiéis e competentes estudiosos, como o confessa o próprio poeta ( “… e nunca senti um ser humano tão perto de mim. Convidei-o para almoçar, e só não peguei nele ao colo. Tinha a impressão de que estava diante da minha própria efígie depois de penitenciada num auto-de-fé.”)- Diário XI, Coimbra, 1973. É firme convicção deste especialista torguiano que “ a sua endógena e universalizadora fidelidade às origens ancestrais, a irredutível resistência libertária de franco-atirador que o opôs às ditaduras que se instalaram ou tentaram instalar-se no seu país, a transparência vernacular e empática da sua linguagem – transformaram Miguel Torga, através do consenso dos seus contemporâneos, numa autêntica consciência nacional, indisfarçável protótipo do cidadão português de sempre.” In “Ser e Ler Torga” ; Fernão Magalhães Gonçalves; Vega; Colecção Perfis.

5. Desta maneira envolto num apego à terra e às gentes simples da aldeia como nenhum outro, numa perspectiva tão natural e de fraternidade cósmica, que em certa medida nos faz lembrar o Santo de Assis, uma vez mais estou a imaginá-lo nas termas do Gerês, que assiduamente frequentava no Verão, caminhando e reflectindo pelas suaves manhãs de Agosto ou, então, já pela tardinha, entranhadamente agarrado às fragas da serra, sempre extasiado, contemplando o magnífico pôr-do –sol na Pedra Bela!...

6. Nascido da terra e para a terra; hermeticamente fechado nas suas convicções de homem que parte, mas não torce, lutou até ao fim até cair, resignado mas não vencido, perante o destino que não perdoa… 

“ Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o Caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir ao encontro do mar
Desaguar.
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.” ----------- ( Diário XVI )


Foi assim Miguel Torga, o poeta sempre vivo, porque o homem não morreu…


Domingos Alves, Julho de 2014.

PS. Várias vezes candidato ao prémio Nobel da Literatura nunca, infelizmente para as letras portuguesas, Miguel Torga foi contemplado com tal distinção, aliás tão justa quanto merecida:“… ou o Nobel para Torga, ou o escândalo!”, dizia Joaquim de Matos no “Letras e Letras” de 15 de Abril de 1969. Mas para a humilde grandeza de tão insigne poeta, contista ímpar, diarista único, sempre avesso a mediatismos e honrarias de toda espécie, talvez a não atribuição do famoso prémio tenha constituído um verdadeiro alívio por mais Nobel que ele fosse…