sexta-feira, 6 de novembro de 2015

NO 107º ANIVERSÁRIO do NASCIMENTO de MIGUEL TORGA

Nascido em S. Martinho de Anta, Vila real, em 12 de Agosto de 1907, Miguel Torga veio a falecer em 17 de Janeiro de 1995, vitimado por doença que não perdoa.

Após breve passagem pelo Seminário de Lamego, ei-lo a demandar Terras de Santa Cruz onde, acolhido por uns tios, passa boa parte da adolescência e juventude, um tanto ou quanto desventuradamente, até de novo regressar a Portugal. Prossegue, então, os estudos secundários para, logo de seguida, se matricular na Faculdade de Medicina de Coimbra, onde conclui a licenciatura em Medicina. É, aliás, no consultório do Largo da Portagem, que exerce a actividade de médico otorrino, praticamente até aos últimos dias da vida aí produzindo, também, a maior parte da sua importante e vastíssima obra literária. 

1. Há 19 anos desaparecido da “terra-mãe” que o “pariu”, continua a fazer germinar, na mente dos seus leitores, e pela fecunda levedura dos seus versos, a ideia de que os verdadeiros poetas nascem, crescem e morrem mas, de facto, nunca desaparecem…E Torga foi, realmente, um grande poeta! Independente de tudo e de todos; medularmente avesso a correntes ideológico – partidárias (ainda que, por vezes, o tenham tentado instrumentalizar), ou seguidismos literários de que sempre se libertou, inflexível e sozinho traçou o seu próprio destino, numa verdadeira linha recta que não mais teve fim, a não ser com o inevitável fatalismo da morte, não se desviando jamais um milímetro que fosse da sua bem longa trajectória existencial. 

De espírito indómito, mas simultaneamente torturado:” Não tive paz, não dei paz, não quero paz”, confessa, meio resignado, meio angustiado: “… logicamente, devia ter ficado a cavar na minha terra, era esse o meu destino (…)” – citação do jornal “Público”, de 16-05-94, aquando do Prémio da Crítica, que na altura lhe fora unanimemente atribuído.

Mais que desassossego íntimo, a sua poesia a todo o momento nos transmite uma verdadeira necessidade ontológica: “preciso tanto de escrever, como a senhora de rezar o terço (… ), respondeu ele a uma veraneante, no Gerês, quando esta lhe perguntou por que motivo ele escrevia “tanto assim…”. O Pe. Avelino, grande amigo e singular companheiro de caça, dizia com certa graça: “Era normal comentarmos os tiros e os falhanços de um e outro. Numa dada altura levanta uma perdiz mesmo à nossa frente; ele atira e falha. Então? digo eu… Estava a desenrolar-se-me um poema”, respondeu ele! – Pe. Avelino, in “Público”, de 18-01-95.

2. De facto, M.Torga escreveu, escreveu muito, assim nos legando uma herança literária que o coloca, inequívoca e muito justamente, ao lado dos maiores escritores portugueses do séc. XX ou até, como refere o crítico espanhol Jesús Herrero na sua magnífica obra “M. Torga, Poeta Ibérico”, um dos maiores poetas da Península. Na verdade, “ cada palavra sua é uma pedra que nenhuma rajada de vento consegue erguer; e, pedra-a-pedra, uma anta arcaica erguida em terra de santo, particularmente São Martinho. Poderão os anos passar e mil ventos demoníacos soprar, aquela anta em terra santa permanecerá, rimando antiguidade com santidade, e o distante adeus (e com ele se ligando assim pelo som) com o eterno Deus. O distante ou quase inaudível é, na verdade, sagrado e eterno, e só se perde quando o ouvem ouvidos comuns; não eram destes ouvidos os de Torga. (… ) A única verdade a que existe dentro do homem; essa ninguém lha pode roubar. E uma pedra que o vento da história e da geografia não ousa erguer, e essa pedra, na verdade uma anta erguida em terra santa de S. Martinho, foi-nos legada por Migue Torga”. Jorge Chichorro, in “Expresso” de 28-01-95.

3. Poeta por excelência, mas igualmente grande no conto, no diário e na ficção autobiográfica, toda a obra de Miguel Torga está imbuída de um forte “telurismo” que certamente a ninguém passará despercebido: para ele, o conhecimento da terra no seu sentido estritamente material, a terrosidade do solo, como diz, é condição primaz para se pertencer, verdadeiramente a uma nação. E, por isso, se impôs a si mesmo, como dever de ética pátria, percorrer todo o corpo físico de Portugal. São de 1949 estas palavras: “é por funda necessidade cultural que eu peregrino esta pátria. ( … )”. “Eça falhou em “A Cidade e as Serras” porque nunca calcorreou as serras. Camilo é muito mais autêntico porque atolava os pés no barro que moldava. Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-las como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e as tristezas” ( Diário V, pág. 60, citado por Jesús Herrero, in ob. cit., pág. 98/99.) 

4. Igualmente merecem oportuna referência as palavras de Fernão Magalhães Gonçalves, um dos seus mais fiéis e competentes estudiosos, como o confessa o próprio poeta ( “… e nunca senti um ser humano tão perto de mim. Convidei-o para almoçar, e só não peguei nele ao colo. Tinha a impressão de que estava diante da minha própria efígie depois de penitenciada num auto-de-fé.”)- Diário XI, Coimbra, 1973. É firme convicção deste especialista torguiano que “ a sua endógena e universalizadora fidelidade às origens ancestrais, a irredutível resistência libertária de franco-atirador que o opôs às ditaduras que se instalaram ou tentaram instalar-se no seu país, a transparência vernacular e empática da sua linguagem – transformaram Miguel Torga, através do consenso dos seus contemporâneos, numa autêntica consciência nacional, indisfarçável protótipo do cidadão português de sempre.” In “Ser e Ler Torga” ; Fernão Magalhães Gonçalves; Vega; Colecção Perfis.

5. Desta maneira envolto num apego à terra e às gentes simples da aldeia como nenhum outro, numa perspectiva tão natural e de fraternidade cósmica, que em certa medida nos faz lembrar o Santo de Assis, uma vez mais estou a imaginá-lo nas termas do Gerês, que assiduamente frequentava no Verão, caminhando e reflectindo pelas suaves manhãs de Agosto ou, então, já pela tardinha, entranhadamente agarrado às fragas da serra, sempre extasiado, contemplando o magnífico pôr-do –sol na Pedra Bela!...

6. Nascido da terra e para a terra; hermeticamente fechado nas suas convicções de homem que parte, mas não torce, lutou até ao fim até cair, resignado mas não vencido, perante o destino que não perdoa… 

“ Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o Caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir ao encontro do mar
Desaguar.
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.” ----------- ( Diário XVI )


Foi assim Miguel Torga, o poeta sempre vivo, porque o homem não morreu…


Domingos Alves, Julho de 2014.

PS. Várias vezes candidato ao prémio Nobel da Literatura nunca, infelizmente para as letras portuguesas, Miguel Torga foi contemplado com tal distinção, aliás tão justa quanto merecida:“… ou o Nobel para Torga, ou o escândalo!”, dizia Joaquim de Matos no “Letras e Letras” de 15 de Abril de 1969. Mas para a humilde grandeza de tão insigne poeta, contista ímpar, diarista único, sempre avesso a mediatismos e honrarias de toda espécie, talvez a não atribuição do famoso prémio tenha constituído um verdadeiro alívio por mais Nobel que ele fosse…