sexta-feira, 27 de maio de 2016

“DA PEDRA AO SAL/DO SAL À ESPUMA” – um livro de Fernando Aldeia. 1)

Este livro, “Da pedra ao sal”/Do sal à Espuma” aparece-nos estruturado em duas partes: através de poemas - a 1ª ; através de crónicas, em linguagem poética - a 2ª, em textos visivelmente urdidos por “um fio condutor”, onde a temática desta se conjuga em perfeita e harmoniosa complementaridade com a daquela.

1.   Relativamente à sua poesia, diz o autor: “A poesia que verto é uma poesia da saudade, do amor pela terra e pela natureza…” – Diário do Minho, 15/12/2015 para, na pág. 79 do presente livro assinalar que “a poesia não é uma tarefa, é uma paixão e uma alegria. Poesia é vida e a vida é feita de poesia”. Muito antes, já o grande Federico Garcia Lorca defendia que “todas as coisas têm o seu mistério; e a poesia é o mistério de todas as coisas…”. Não era, aliás, por acaso, que frequentemente eu dizia aos meus alunos: “meus caros amigos, não é poeta quem quer; só é poeta quem merece e pode…”.

A temática das crónicas (2ª parte) não se desvia, de modo algum, da temática dos poemas; antes a enriquece e completa, numa intencional e perfeita simbiose que, certamente, a nenhum leitor passará despercebida.
Fernando Aldeia, acreditem, é um verdadeiro poeta, e o “Da Pedra ao Sal/Do Sal à Espuma”, um sincero e acabado exemplo de alguém que faz poesia e alimenta a prosa, não só por amor, como por imposição da sua própria natureza, mesmo que “o acto de criar implique renúncia, exija sofrimento e envolva angústia…”. No entanto, e porque a poesia (e a linguagem poética) é sempre um acto criador, “ ao mesmo tempo que possa angustiar transmite uma sensação única de plenitude”. O escritor, neste caso o poeta, sofre, mas sente-se feliz, porque enquanto escreve não precisa de mais nada, senão de fazer o que faz”. – pág. 84.

2.   Como atrás foi sublinhado, a poesia de Fernando Aldeia é, sobretudo, uma poesia da saudade, do amor pela terra e pela natureza…

2.1.  Saudade, esse sentimento tão latino e tão português, surge a cada passo no decurso do texto. Vejamos, por exemplo, alguns versos das págs. 28 (“Infância”) – “Regresso ao tempo da infância/ao tempo em que há memória./Um passado sempre presente/que rejuvenesce a alma/e o corpo ainda sente./Em cada amanhecer acordo/com largo sorriso de criança,/olho os montes e o sol nado/colorindo nas alturas a esperança./A neve, o frio, a terra, os pássaros, o rio/em que verto a minha saudade…” e 43 (“Memórias”)-“Junto ao rio que me viu nascer/despontam hortências e roxos lírios/na encosta que o beija e acaricia/salpicam papoilas dos meus delírios./Com o odor da carqueja me incendeio/subo a serra, espreito o casario/por mais que suba não subo, creio/fico mais perto do meu rio./Os montes, vaidosos, cantam hinos/aleluias desenham primaveras de encanto/heras me abraçam em cada partida/abafando o sussurro de meu pranto./Junto ao rio que me viu nascer/ecoam hossanas em cada entardecer.” Belo poema este, sem dúvida, a fazer lembrar aquele outro do nosso grande Camões, na famosa “Redondilha de Babel e Sion”: “Sôbolos rios que vão/Por Babylónia, me achei/Onde sentado chorei/As lembranças de Sião/E quanto nella passei./Ali o rio corrente/De meus olhos foi manado;/E tudo bem comparado,/Babylónia ao mal presente,/Sião ao tempo passado”. Não estamos, certamente, perante mera coincidência…

2.2.      Natureza -  Amor pela terra e amor pelo mar
Saboreemos, igualmente, este belo naco de prosa poética, tão ao gosto de Fenando Aldeia, e que o autor nos apresenta, de modo tão delicioso e algo até comovente! (ler Capelinha de Santo António” – pág. 73. “ Naquela tarde de Setembro, quando cheguei à capelinha de Stº António e avistei o Tuela, apeteceu-me ficar ali, fazer do chão o berço embalado pelo santo. Olhei os vetustos montes em frente afagando um céu azul, e lá no fundo o reflexo das águas correndo doces e calmas para o Douro. Deixei-me acariciar pela brisa que soprava meiga e morna num abraço voluptuoso. Olhei a vila e apontando o dedo na direcção da casa onde nasci, ali fiquei, extasiado, repleto de saudades, como que adormecido, feliz. Não consegui suster um grito de profundo contentamento, como se fora rei daquele espaço ou de animal solto marcando o seu território. Inesperadamente, das frondosas árvores que me sombreavam, revoadas de pássaros levantaram voo, e assustados partiram para outros poisos…

 Também o mar não “escapou” à inspiração do escritor/poeta. São muitas e variadas, aliás, as referências ao longo de todo o livro como é o caso, por exemplo, do texto da pág. 97 (“Praia da Apúlia), onde podemos ler: “ Conheci o mar quando tinha sete anos. No meu rincão nordestino, o nosso mar era o sereno e doce Tuela.
Desde logo, o grande lago azul provocou em mim um fascínio que se tem grudado à alma até hoje. Lembro a corrida louca, desprendendo-me da mão de minha mãe ao encontro da água ondulada, o mergulho e o primeiro trago salgado, poção mágica que me enfeitiçou e me deixou prisioneiro da sua imensidade… No mar também se escreve poesia.” Esta passagem faz-nos lembrar Sophia de Mello Breyner Andresen, uma das grandes paixões inspiradoras de Fernando Aldeia, tal como o foram Miguel Torga e Eugénio de Andrade. Escrevia, assim, a grande poetisa nortenha, em 1944, no seu belo poema “Mar”:
                                     
 “De todos os cantos do mundo/Amo com um amor mais forte e profundo/Aquela praia extasiada e nua/Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.”                            
“Cheiro a terra, as árvores e o vento/que a Primavera enche de perfumes/Mas neles só quero e só procuro/A selvagem exalação das ondas/Subindo para os astros como um grito puro”. In “Poesias”, 1944.




3.   Deixo para o fim alguns versos de um dos poemas de que mais gostei neste livro : “Mãe” (pág. 25). Antes, porém, permitam-me, ainda, a leitura de mais dois outros: de Miguel Torga, o 1º; e de Eugénio de Andrade, o 2º, ambos, aliás, com o mesmo título.

                       
Mãe

Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
………………………………………………..

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!


Miguel Torga,
in 'Diário IV'

            ***

POEMA à MÃE
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
…………………………………….

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

……………………………………………

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
………………………………………………
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim
E deixo-te as rosas…


Eugénio de Andrade
, in "Os Amantes Sem Dinheiro”


Termino, então, com Fernando Aldeia

Mãe
Prometeste-me que um dia voltarias.
Esperarei, andando por aí.
Depois de partires, cada vez mais só,
tento esconder de todos
a tristeza que me devora a alma.
…………………………………………
Lembras-te?
A nossa terra, os ulmeiros, o rio, o arrabalde,
as ruas da cidade, os melros fugitivos
mas que te encantavam!
Como sorrias, quando eles chilreavam
aquela apaixonante sinfonieta,
esvoaçando para outros poisos.
O lamento por não teres asas
para poderes competir com eles!
………………………………………………………..
Tuas mãos mimosas ainda acenam
adeus a quem passa.
Por vezes, junto ao rio,
adormeço com o murmúrio das águas
à espera que me acordes com mil beijos.
Mãe, podes vir agora,
mesmo que o vento teime em levar-te
para o lugar onde não queres estar.

Fernando Aldeia, in “Da Pedra ao Sal/Do Sal à Espuma




“DA PEDRA AO SAL/DO SAL À ESPUMA” _  um livro para ser lido, reflectido e saboreado!

1) Com a presença de alunos dos 10º, 11º e 12º anos da Escola Secundária Sá de Miranda, aquando da apresentação da obra, em 22 de Fevereiro, de 2016.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo as regras do chamado Novo Acordo Ortográfico.

Braga, 22 de Fevereiro de 2016.

Domingos Alves.